Como se sabe, durante muito tempo, a doutrina classificou a união entre pessoas do mesmo sexo (parceria homossexual ou união homoafetiva) como ato inexistente, estando a matéria excluída do direito de família, devendo ser analisada como contrato de sociedade (art. 981, caput, do CC) e gerando apenas efeitos de caráter obrigacional.
Em várias manifestações, pudemos expor a nossa discordância em relação a esse posicionamento.
Isso porque, conforme expusemos em outros estudos, deve ser feita uma interpretação mais ampla do art. 226, § 3.º (que discorre sobre a união estável entre homem e mulher), à luz do caput, que prestigia a proteção da família, e, especialmente, do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III, da CF/88).
Nesse sentido, escrevemos que a união homoafetiva, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1.º, III — regra-matriz dos direitos fundamentais), do direito à intimidade (art. 5.º, X), da não discriminação, enquanto objetivo fundamental do Estado (art. 3.º, IV), da igualdade em relação ao tratamento dado à união estável entre um homem e uma mulher (art. 5.º, caput), deve ser considerada entidade familiar e, assim, ter o tratamento e proteção especial por parte do Estado, exatamente como vem sendo conferido à união estável entre um homem e uma mulher.
Conforme estabeleceu Maria Berenice Dias, mostra-se “… impositivo reconhecer a existência de um gênero de união estável que comporta mais de uma espécie: união estável heteroafetiva e união estável homoafetiva. Ambas merecem ser reconhecidas como entidade familiar. Havendo convivência duradoura, pública e contínua entre duas pessoas, estabelecida com o objetivo de constituição de família, mister reconhecer a existência de uma união estável. Independente do sexo dos parceiros, fazem jus à mesma proteção…”.[1]
Nesse sentido, o STF, em 05.05.2011, ao julgar a ADI 4277 e a ADPF 132, reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo.
Conforme compilado, “no mérito, prevaleceu o voto proferido pelo Min. Ayres Britto, relator, que dava interpretação conforme a Constituição ao art. 1.723 do CC para dele excluir qualquer significado que impeça o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo perfeito de família. Asseverou que esse reconhecimento deveria ser feito segundo as mesmas regras e com idênticas consequências da união estável heteroafetiva. De início, enfatizou que a Constituição proibiria, de modo expresso, o preconceito em razão do sexo ou da natural diferença entre a mulher e o homem. Além disso, apontou que fatores acidentais ou fortuitos, a exemplo da origem social, idade, cor da pele e outros, não se caracterizariam como causas de merecimento ou de desmerecimento intrínseco de quem quer que fosse. Assim, observou que isso também ocorreria quanto à possibilidade da concreta utilização da sexualidade. Afirmou, nessa perspectiva, haver um direito constitucional líquido e certo à isonomia entre homem e mulher: a) de não sofrer discriminação pelo fato em si da contraposta conformação anátomo-fisiológica; b) de fazer ou deixar de fazer uso da respectiva sexualidade; e c) de, nas situações de uso emparceirado da sexualidade, fazê-lo com pessoas adultas do mesmo sexo, ou não” (Inf. 625).
Observa-se que a decisão foi proferida em controle abstrato e, assim, produziu efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário.
Contudo, de maneira inusitada e totalmente equivocada, determinado Juiz em Goiás cancelou, de ofício e em suposto ato correcional, o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo, determinando, ainda, que nenhum cartório pudesse assegurá-la.
Contra esse ato, a Corregedora-geral da Justiça em Goiás, avocando os referidos autos, tornou, também em decisão supostamente administrativa, sem efeito aquela prolatada pelo juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública Municipal e de Registros Públicos de Goiânia.
Sem analisar, nesse momento, a modalidade da cassação da decisão proferida, chamamos a atenção para o total desrespeito à ideia do efeito erga omnes, ex tunc e vinculante da decisão proferida pelo STF no controle abstrato, seja na citada ADI como na referida ADPF.
Em nenhum momento sugere-se que as decisões proferidas pelo STF devam ter a concordância de todos.
Contudo, a ideia do efeito vinculante é básica e, por esse motivo, totalmente inusitada a decisão proferida no sentido de se criticar e afastar a interpretação dada pela Suprema Corte que, em nosso sistema, é o Órgão que interpreta por último, estabelecendo a “força normativa” da Constituição.
O magistrado não está impedido de expor a sua não concordância com as decisões proferidas. Contudo, eventual entendimento pessoal não poderá jamais prevalecer sobre a interpretação final proferida pelo STF, podendo, no máximo, ser expresso como ressalva e sem qualquer caráter decisório.
Diante de toda essa problemática, ainda resta em aberto a possibilidade de o CNJ atuar no sentido de eventual punição ao magistrado.
A problemática precisará ser analisada com muito cuidado, lembrando que ao CNJ, nos termos do art. 103-B, § 4.º, compete apenas o controle da atuação administrativa e financeira do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes.
Eis a polêmica a ser investigada: se a decisão proferida pelo juiz de Goiás tem natureza jurisdicional, contra ela deveria ter sido interposto o instrumento da reclamação e, assim, haverá dificuldade de sua punição administrativa pelo CNJ.
Claro que a situação seria diferente se o Juiz reiteradamente continuasse a desrespeitar as decisões proferidas pela Suprema Corte, o que não é o caso em análise. O tema, portanto, ainda está aberto...