quarta-feira, 3 de julho de 2013

“É PRECISO SABER ESCUTAR A VOZ DAS RUAS”: mas, claro, respeitando a Constituição


Inegavelmente, o Estado brasileiro precisa passar pela “engavetada” e necessária reforma política e, como se sabe, dentro do modelo atual, o instrumento para a sua implementação é a PEC, ou seja, uma proposta de emenda à Constituição.
Buscando dar uma resposta aos vários movimentos que tomaram conta do país e deflagrados pelo aumento das tarifas de ônibus (e, claro, todos sabem que não são os “vinte centavos” o fator de mobilização e do descontentamento com o modelo de representação), a Presidenta Dilma Rousseff, em discurso um pouco tardio, enaltecendo a “voz das ruas”, propôs a convocação de uma assembleia nacional constituinte exclusiva e específica para a reforma política.
Em suas palavras, ditas na abertura da reunião com governadores e prefeitos realizada em 24/06/2013, assim se expressou ao estabelecer os 5 pactos nacionais: 1. responsabilidade fiscal, para garantir a estabilidade da economia e o controle da inflação; 2. construção de uma ampla e profunda reforma política, que amplie a participação popular e amplie os horizontes da cidadania; 3. saúde, inclusive com a possibilidade de contratação de profissionais estrangeiros para trabalhar com exclusividade no SUS, quando não houver a disponibilidade de médicos brasileiros; 4. salto de qualidade nos transportes públicos e obras de mobilidade pública 5. educação pública, com a destinação de 100% dos royalties do petróleo e 50% dos recursos do pré-sal para o setor.
O ponto que passamos a analisar é a proposta relacionada ao 2.º pacto, implementado por uma sugerida constituinte exclusiva.
Vejamos as palavras de sua Excelência: “...Mas quero repetir principalmente que meu governo está ouvindo a voz democrática, as vozes democráticas que saem e emergem das ruas e que pedem mudanças. É preciso saber escutar a voz das ruas. Só ela é capaz de nos impulsionar a andar ainda mais rápido. É preciso que todos, todos mesmo, sem exceção, entendam esses sinais com humildade e acerto. Isso vale não apenas para nós, líderes de governos, mas igualmente para os brasileiros e brasileiras que estão em suas casas e também para aqueles que foram às ruas. Se aproveitarmos bem o impulso dessa nova energia política, poderemos fazer mais rápido muita coisa”. E, nesse sentido, afirma: “Quero, nesse momento, propor o debate sobre a convocação de um plebiscito popular que autorize o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política que o país tanto necessita. O Brasil está maduro para avançar e já deixou claro que não quer ficar parado onde está”.
Nesse ponto, com o máximo respeito, mesmo que buscando “escutar a voz das ruas”, mesmo que houvesse legitimação por plebiscito popular, admitir uma constituinte específica ensejaria total afronta à Constituição.
Como se sabe, a única maneira de se alterar a Constituição no momento atual é mediante a aprovação de uma PEC, com todos os limites explícitos e estabelecidos no art. 60 da CF/88, bem como os limites implícitos que decorrem do sistema.
Por outro lado, a proposta de se estabelecer uma Constituinte exclusiva e específica seria o mesmo que admitir uma parcial manifestação do poder constituinte originário.
Devemos esclarecer que o poder constituinte originário (também denominado inicial, inaugural, genuíno ou de 1.º grau) é aquele que instaura uma nova ordem jurídica, rompendo por completo com a ordem jurídica precedente.
O objetivo fundamental do poder constituinte originário, portanto, é criar um novo Estado, diverso do que vigorava em decorrência da manifestação do poder constituinte precedente.
O poder constituinte originário é inicial, autônomo, ilimitado juridicamente, incondicionado, soberano na tomada de suas decisões, um poder de fato e político, permanente.
a) inicial, pois instaura uma nova ordem jurídica, rompendo, por completo, com a ordem jurídica anterior;
b) autônomo, visto que a estruturação da nova constituição será determinada, autonomamente, por quem exerce o poder constituinte originário;
c) ilimitado juridicamente, no sentido de que não tem de respeitar os limites postos pelo direito anterior, com as ressalvas a seguir indicadas e que passam a ser uma tendência para os concursos públicos;
d) incondicionado e soberano na tomada de suas decisões, porque não tem de submeter-se a qualquer forma prefixada de manifestação;
e) poder de fato e poder político, podendo, assim, ser caracterizado como uma energia ou força social, tendo natureza pré-jurídica, sendo que, por essas características, a nova ordem jurídica começa com a sua manifestação, e não antes dela;
f) permanente, já que o poder constituinte originário não se esgota com a edição da nova Constituição, sobrevivendo a ela e fora dela como forma e expressão da liberdade humana, em verdadeira ideia de subsistência. Segundo Manoel Gonçalves Ferreira Filho, essa característica decorre de fórmula clássica prevista no art. 28 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, editada como preâmbulo da Constituição francesa de 1793 e “... no sentido de que o homem, embora tenha tomado uma decisão, pode rever, pode mudar posteriormente essa decisão...” (O poder constituinte, p. 58). Isso não significa que o poder constituinte originário permanente e “adormecido” sairá desse estado de “hibernação” e de “latência” a todo e qualquer momento, até porque instauraria indesejada insegurança jurídica. Para tanto, deve haver o “momento constituinte”, uma situação tal que justifique e requeira a quebra abrupta da ordem jurídica.
Pois bem, não é o caso do momento atual. Não se vislumbra esse tal “momento constituinte”. A convocação de instrumento de alteração específico afrontaria, dentre outros, a implícita proibição de se alterar a titularidade do poder constituinte originário, bem como a titularidade do poder de reforma que se implementa por ato exclusivo do Congresso Nacional.
É preciso, sim, escutar a voz do povo, mas não se pode violentar o processo de reforma da Constituição.
Como alternativa, e o tema precisa ser amadurecido, a própria Presidente recuou e passou, agora, a pensar em instrumentos de soberania popular, como o plebiscito e o referendo, não para se dar um “cheque em branco” para a tal constituinte parcial e específica, mas para referendar – e esse seria um modelo melhor –, uma eventual alteração que viesse respeitando o modelo constitucional, qual seja, por necessária e formal proposta de emenda.

2 comentários:

  1. Professor, excelente "comentário". Te enviei um e-mail, por favor me responda (Márcio).

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  2. Esse escutar a voz das ruas deve refletir um escutar obedecer/fazer, é claro respeitando aos limites legais e condições da nação, pois nem tudo o que queremos será de imediato atendido, temos coisas programáticas que num tempo, não tão longo, deverão ser atendidas. Por outro lado temos coisas urgentes postas pelas ruas, mas que já são discutidas e conhecidas de todos, como as reformas, não só a política, como também a TRIBUTÁRIA, ADMINISTRATIVA, ETC., estas deverão ser atendidas "ontem".

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