sábado, 7 de maio de 2011

JUIZ DE DIREITO CEGO

Nos termos do art. 37, II, da CF/88, a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração.
De maneira bastante completa, Hely Lopes Meirelles define o concurso público como:

“…o meio técnico posto à disposição da Administração Pública para obter-se moralidade, eficiência e aperfeiçoamento do serviço público e, ao mesmo tempo, propiciar igual oportunidade a todos os interessados que atendam aos requisitos da lei, fixados de acordo com a natureza e complexidade do cargo ou emprego, consoante determina o art. 37, II, da CF. Pelo concurso afastam-se, pois, os ineptos e os apaniguados que costumam abarrotar as repartições, num espetáculo degradante de protecionismo e falta de escrúpulos de políticos que se alçam e se matem no poder leiloando cargos e empregos Públicos” (Direito administrativo brasileiro, 30ª ed., Malheiros, 2005, p. 419 - grifamos).

Em razão da regra do concurso público, os provimentos derivados foram praticamente banidos do nosso ordenamento jurídico, sendo enfaticamente afastados pela jurisprudência do STF.
Lembramos, ainda, que o concurso público terá validade de até 2 anos, prorrogável, uma única vez, por igual período. Durante o período de validade do concurso, reconhece-se a preferência de convocação dos concursados. E, ainda, a contratação temporária, sempre por tempo determinado, deverá ser exceção para atender a uma necessidade temporária de excepcional interesse público.
Assim sendo, a regra do concurso público deverá ser observada também para a contratação de pessoas portadoras de deficiência física, até porque a Constituição não faz qualquer distinção.
O art. 5.º, caput, consagra serem todos iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza.
Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material.
Isso porque, no Estado Social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei.
Essa busca por uma igualdade substancial, muitas vezes idealista, reconheça-se, eterniza-se na sempre lembrada, com emoção, Oração aos Moços, de Rui Barbosa, inspirado na lição secular de Aristóteles, devendo-se tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais na medida de suas desigualdades.
Portanto, todo edital de concurso público deve, por obrigatoriedade constitucional, reservar percentual de cargos e empregos aos portadores de deficiência que concorrerão, entre si, para o preenchimento de vagas reservadas e através de um critério diferenciado de seleção.
A grande dificuldade consiste em saber até que ponto a desigualdade não gera inconstitucionalidade e qual restrição poderá ser feita aos portadores de necessidades especiais.
Celso Antônio Bandeira de Mello parece ter encontrado parâmetros sólidos e coerentes em sua clássica monografia sobre o tema do princípio da igualdade, na qual estabelece três questões a serem observadas, a fim de se verificar o respeito ou desrespeito ao aludido princípio. O desrespeito a qualquer delas leva à inexorável ofensa à isonomia. Resta, então, enumerá-las: “a) a primeira diz com o elemento tomado como fator de desigualação; b) a segunda reporta-se à correlação lógica abstrata existente entre o fator erigido em critério de discrímen e a disparidade estabelecida no tratamento jurídico diversificado; c) a terceira atina à consonância desta correlação lógica com os interesses absorvidos no sistema constitucional e destarte juridicizados”.[1]
Esses critérios podem servir de parâmetros para a aplicação das denominadas discriminações positivas, ou affirmative actions,[2] tendo em vista que, segundo David Araujo e Nunes Júnior, “... o constituinte tratou de proteger certos grupos que, a seu entender, mereceriam tratamento diverso. Enfocando-os a partir de uma realidade histórica de marginalização social ou de hipossuficiência decorrente de outros fatores, cuidou de estabelecer medidas de compensação, buscando concretizar, ao menos em parte, uma igualdade de oportunidades com os demais indivíduos, que não sofreram as mesmas espécies de restrições”.[3]
Por fim, nos termos do art. 5º, § 2º da Lei n. 8.112/90, os deficientes físicos só poderão objetivar cargo cujas atribuições sejam compatíveis com a deficiência de que são portadores. Deve, portanto, haver nexo de causalidade entre a vedação e o exercício do cargo. Por exemplo, e naturalmente, um portador de deficiência visual não poderá ser contratado para o exercício do cargo de motorista.
Contudo, em relação ao caso em análise, e tendo em vista as técnicas que existem atualmente e os avanços tecnológicos, parece perfeitamente possível o exercício do cargo de Magistrado, ou mesmo membro do Ministério Público, por um deficiente visual. A Administração, para cumprir o requisito constitucional do art. 37, VIII, deverá disponibilizar os instrumentos para o exercício da função.
Eventual norma infraconstitucional que não tenha previsto vaga para deficiente físico deverá ser afastada, adequando-se ao texto de 1988.
Nessa linha, enaltece-se a experiência de vida de Ricardo da Fonseca.
O ilustre colega atuou como Procurador do Trabalho e, em 2009, foi promovido a desembargador federal do Trabalho pelo quinto constitucional.
No início de sua carreira, Ricardo foi reprovado para um concurso de juiz de direito e, finalmente, depois de quase 20 anos, a situação é “reparada”.
Estamos diante de exemplo preciso de isonomia substancial e discriminação positiva, servindo o exemplo narrado como modelo de superação para todos nós!
PEDRO LENZA


[1] Celso Antônio Bandeira de Mello, Conteúdo jurídico do princípio da igualdade, p. 21, e desenvolvimento, p. 23-43.
[2] Cf. interessante trabalho de Paulo Lucena de Menezes, A ação afirmativa (affirmative action) no direito norte-americano, passim, esp. p. 147-154 para o ordenamento brasileiro, e, também, do Ministro do STF Joaquim Barbosa, intitulado, Ação afirmativa & princípio constitucional da igualdade: o direito como instrumento de transformação social — a experiência dos EUA, passim.
[3] Curso de direito constitucional, 6. ed., Saraiva, 2002, p. 93 (original sem grifos).

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